UMA ANÁLISE DA “MENS LEGIS” EM NORMA PESQUEIRA: ARRASTO DE PRAIA X OUTRAS ARTES DE PESCA

Por Ernesto São Thiago, advogado especializado em Direito da Orla e consultor em desenvolvimento náutico.

A recente autuação de pescadores no litoral catarinense, ocorrida em dezembro passado, levanta questões sobre a correta aplicação da legislação ambiental e o impacto das normas sobre as práticas tradicionais da pesca da tainha. A proibição do uso de redes de emalhe a menos de 300 metros do costão, estabelecida pela Portaria Interministerial SEAP/PR-MMA nº 24, de 15 de maio de 2018, tem como objetivo proteger a pesca da tainha com arrasto de praia. No entanto, quando da autuação, a safra já havia se encerrado, tornando a fiscalização desprovida de fundamento.

O princípio jurídico “mens legis”, que pode ser traduzido como "a intenção da lei", é fundamental para a correta aplicação das normas. A legislação ambiental mencionada foi criada para garantir a proteção da pesca artesanal da tainha, evitando interferências indevidas de outras modalidades pesqueiras durante a safra. Entretanto, sua aplicação fora desse contexto desvirtua a intenção original da norma, impondo restrições desnecessárias aos pescadores.

Segundo a Associação de Pescadores de Arrasto de Praia de Santa Catarina (APAPSC), a pesca da tainha de arrasto de praia na região em tela se encerrou na prática em 31 de julho. Após essa data, a modalidade não ocorre mais, tornando injustificáveis as autuações baseadas na proteção dessa modalidade pesqueira. A Associação também propôs, no Grupo de Trabalho (GT) da Tainha, a antecipação do prazo estipulado na norma vigente, visando evitar conflitos entre diferentes artes de pesca proibidas nesse período.

A própria norma, ao regulamentar a proteção do arrasto de praia durante a safra, proíbe a atuação de outras artes de pesca que poderiam interferir na atividade, tais como redes de emalhe, cercos flutuantes, redes de trolha, uso de faróis manuais, anzóis, fisgas e garateias a menos de 300 metros dos costões e a menos de uma milha náutica da costa. Assim, é evidente que a intenção normativa não era impedir a continuidade da atividade pesqueira após o fim da safra, mas sim protegê-la durante o período crítico.

Além da ausência de justificativa para a fiscalização, há questionamentos sobre a legalidade do procedimento. O auto de infração não apresenta evidências georreferenciadas que comprovem a exata localização da infração, como registros fotográficos que indiquem a presença da rede na água dentro da área restrita. Outro ponto crítico é a falta de comprovação da qualificação dos fiscais responsáveis pela autuação, requisito essencial para o exercício do poder de polícia ambiental.

A destinação da rede de pesca apreendida também levanta dúvidas. Testemunhas afirmam que, ao invés de ser reciclada ou incinerada conforme determinações legais, a rede foi doada ou vendida a terceiros antes do prazo legal. Esse fato pode configurar desvio de finalidade na gestão de bens apreendidos e reforça a necessidade de maior transparência e rigor na condução dos processos administrativos ambientais.

Diante dessas irregularidades, pescadores e entidades representativas reivindicam a revisão das autuações emitidas após o encerramento da safra e a adequação dos períodos de restrição à pesca, garantindo maior previsibilidade e segurança jurídica ao setor. O debate sobre a regulamentação da pesca deve considerar não apenas a proteção ambiental, mas também a manutenção das práticas culturais e a sustentabilidade econômica das comunidades pesqueiras.

Enquanto essas questões não são devidamente endereçadas, permanece a incerteza sobre o futuro da pesca artesanal e a necessidade de ajustes normativos que equilibrem conservação ambiental e direitos dos pescadores.

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